Gastei todos os silêncios. Deixei que se
obscurecessem todos os pensamentos.
Gaivota em terra, o meu coração que se
arrependeu de tentar ser mar.
No piar do mocho o augúrio enche a noite.
Borboletas inundando-me o estômago.
Borboletas noturnas, negras.
Como as trevas que envolvem a noite, assim
um barco me navega pelos pensamentos.
Não há noite para quem se esquece de sonhar,
apenas um barco atravessando um rio.
Um barco negro. Um rio de mágoas e desespero.
A noite é a cama de todas as conversas, de todos
os limites. A noite é assim como um verbo,
esquecido na palavra que o saberia conjugar.
Eu trazia comigo todas as palavras, qual cesto
de flores colhidas pelos campos. Trazia comigo
as flores e os gestos, palavras em flor que se
tornariam jardim. Trazia comigo as manhãs de nevoeiro
onde escondi lamentos entre lençóis de cetim.
Trazia comigo as palavras e o gesto. Mas
a cesta perdeu a asa, romperam-se os vimes,
o entrançado das formas a cair no chão.
Foram-se as palavras, morreram todos os gestos.
Dissipou-se o poema no intenso nevoeiro.
E um dia tudo será esquecido. Procurarei
as palavras certas e elas, simplesmente, terão
levantado voo há muito tempo, para bem longe de mim.
Um dia, sei-o bem, também tu me esquecerás.
Palavra nunca proferida, o nome das coisas.
O nome que dávamos ao tempo e ao abraço.
O nome que nos unia os corações na distância
das noites que nos separavam. O nome que a música
criou em nós. O silencioso som da palavra que éramos nós.
Um dia tudo deixará simplesmente de existir.
O nome não terá quem o recorde, a palavra
acabará num qualquer contentor de lixo.
Páginas de um livro já rasgado, as palavras
misturando-se no esquecimento de todas as coisas.
Um dia deixaremos também de existir.
Como uma história que acaba.
Um romance que termina.
Um dia.
Felipa Monteverde
(ANTOLOGIA "PREMONIÇÕES, EDITORA LUA DE MARFIM, 2015)